"Joga, joga pra mim", grita Ana Paula Silva, de 12 anos, enquanto joga taco com os colegas de bairro na rua em que mora. Vestida com uma calça de moletom lilás, sovada, e uma camiseta que faz parte do uniforme escolar estadual e calçando um chinelo Havaianas verde, ela pula e comemora os pontos que marca. A menina mora no bairro Santa Catarina, também conhecido por Profipo (Projeto Financiado pela Prefeitura), localizado no sul de Joinville. A população do bairro é de cerca de 10 mil pessoas, divididas em 5.194 mulheres e 5.407 homens, segundo os dados do Instituto de Pesquisa e Planejamento para o Desenvolvimento Sustentável de Joinville (Ippuj).
As crianças e adolescentes formam 36% da população do bairro. E todas as tardes, após as 15 horas, elas se reúnem na “pracinha”. A intenção é brincar nos balanços e escorregador, porém, a estrutura do parquinho não comporta o número de crianças e as condições físicas do local não são favoráveis. Em meio às correntes enferrujadas das balanças e às tabuas podres e gastas do escorregador, elas se divertem por alguns minutos, mas isso apenas até o grupo completo de crianças chegar.
Lá vem um garotinho ativo e comanda o grupo para o campo de areia. Embaixo do braço traz uma bola velha e descosturada, mas ainda assim, uma bola. O menino tem 12 anos e seu nome é Israel, ele é irmão gêmeo de Ana. Os quinze meninos que o esperavam partem atrás dele e o jogo começa. A diversão acontece entre gritos, chutes fortes de bola e pequenos dribles ainda mal elaborados. Alguns tombos e empurrões são impossíveis de ser evitados. Os garotos não têm uniformes de futebol, usam roupas normais e jogam descalços. Sai um gol, feito por Israel, e do outro lado do time, ouve-se um xingamento que logo cessa, porque o jogo dos meninos de 12 anos tem que continuar.
As meninas cansam do parque e se instalam próximo à grade de arame, cheia de buracos, mas ainda assim, uma grade. Percebe-se entre elas conversas paralelas, algumas torcem pelos garotos, outras só estão ali. E uma delas é Ana, que mantém uma conversa empolgante com a amiga do lado. Essas são as brincadeiras e diversões das crianças do bairro e duram apenas até as 17 horas, quando os adolescentes resolvem tomar conta do campo e expulsar as crianças, sem agressões físicas, mas acreditando que possuem mais direitos do que os pequenos. “Vamos embora, pirralhada, que a galera chegou”, grita Roger, um rapaz de 17 anos. As crianças partem cada uma para sua casa.
O potencial econômico do bairro está nas pequenas indústrias, comércios e outros serviços. A renda estimada por habitante é de um salário mínimo, em média. Algumas famílias recebem assistência dos próprios moradores. E a igreja católica do bairro oferece almoço para os menos favorecidos economicamente. “Temos muitas crianças aqui, mas adultos e adolescentes também aparecem”, diz Iraci Souza, 79 anos, que auxilia na cozinha. A cozinha comunitária sobrevive de doações dos moradores há aproximadamente nove anos, mas consegue oferecer apenas um almoço. A assistência médica fica por conta do posto de saúde. “É difícil conseguir vaga, vive cheio, às vezes eles ligam, a gente vem, mas aí não dá tempo de ser atendido ou não tem médico e a gente tem que voltar pra casa e se virar com chá mesmo”, comenta Terezinha Batista, 43 anos, que espera por uma consulta há três meses.
Ana Paula Silva estuda na Escola Estadual Alicia Bittencourt Ferreira, está na sexta série do ensino fundamental. “Vou bem na escola, gosto da minha escola, dos meus amigos, muita gente diz que não é uma boa escola, mas eu acho boa assim mesmo”, conta a menina enquanto movimenta os ombros mostrando que não dá importância aos comentários. Ana gosta de estudar, gosta de português e história, de jogar bola com as amigas, de ir à casa da avó que mora no mesmo bairro, de subir em árvores e assistir televisão quando não tem aula. Seu desenho preferido é As três espiãs. Ana não gosta de Matemática, de tomar banho cedo e nem de dormir antes das 22 horas. Ela não gosta de histórias comoCinderela e também não costuma brincar com bonecas.
A vida no outro lado da cidade
No bairro América, mora outra Ana, mas essa Ana estuda no Colégio Adventista de Joinville. Esta Ana tem 11 anos e o que mais gosta de fazer é ficar na casa da avó e brincar com os primos, alguns ainda bebês. Ana Paula Zimmerman, além de estudar, faz aulas de teclado, de inglês, espanhol e balé. As tardes de Ana não estão livres para brincar, ela chega da escola ao meio-dia e se arruma para os cursos. Quando retorna, faz as tarefas com a ajuda da babá. Os pais de Ana conseguem almoçar todos os dias com a garota, mesmo assim, ela sente falta deles. “Eles ficam só uma hora em casa, a gente só almoça juntos, mas sei que eles têm que trabalhar”, diz ela.
Ana gosta dos cursos que faz e diz que vai muito bem em todos eles. “Às vezes fico cansada e com sono, mas depois passa”. Ana não tem irmãos e, nos finais de semana, fica em casa para estudar para as provas. Os pais trabalham aos sábados e domingos, passam o dia inteiro no computador ou no telefone. O pai é empresário. “Meu pai tem três celulares, ele recebe muita ligação”, comenta.
Loira, de olhos castanhos caídos, usando um vestido da Lilica Ripilica, Ana ama os pais e orgulha-se deles. Mas sua infância tem muitas responsabilidades. Olha constantemente para o relógio e, quando pergunto por que, ela responde: “Desculpa, é que eu preciso estudar para as aulas de teclado. Tenho que tirar duas músicas para hoje e estou com medo de não ter tempo”. Lá vai a garota para o seu quarto lilás com papel de parede de estrelas azuis e todo o resto da decoração nas mesmas tonalidades de cores. Puxa a banqueta roxa do teclado, abre um livro com notas musicais e começa a tocar o tema do filme O fantasma da Ópera, ainda com algumas falhas, saltando algumas notas, talvez por estar nervosa com a minha presença ou por ainda não ter decorado os andamentos.
Sobre a cabeceira da cama de Ana há uma estante com livros. Consegui perceber que havia muitos livros de línguas estrangeiras e alguns de literatura infantil como A bela e a fera,Branca de Neve e Cinderela, em meio a eles, a coleção completa dos livros de Harry Potter do qual a menina confessou ser fã. Em seu armário guarda algumas fantasias - ela faz questão de mostrar a que mais gosta, a roupa da bruxinha de Hogwarts, a fantasia de Hermione Granger. Um dos livros me chamou a atenção, escondido após a coleção Harry Potter, estava O mundo de Sofia, de Jostein Gaarder. Perguntei se ela havia lido e a garota respondeu que não, que foi presente do pai, mas que ainda não teve tempo para ler.
Ana voltou ao teclado e pude observar ao lado dele algumas coleções de CDs do High School Musical, Rebeldes e Hanna Montana. Um gosto comum para uma menina da idade dela. Mas, perdido como O mundo de Sofia, havia um CD de Bach que Ana ganhara da professora de música e que a menina confessou não gostar.
A babá entrou no quarto: “Ana, está na hora de ir, você tem aula agora”. Ana apenas balançou a cabeça, fazendo um gesto afirmativo. Levantei-me, agradeci e me despedi. A menina não queria que eu fosse embora: “Você pode vir outro dia para brincarmos, podemos andar de bicicleta no jardim ou ouvir os meus CDs”. E assim, deu um sorrido meio tímido.
Segundo as pesquisas realizadas pelo Ippuj, o bairro América tem 10.851 habitantes: 5.100 homens e 5.751 mulheres. As crianças e adolescentes até 17 anos formam 24% da população. O potencial econômico do bairro está concentrado na oferta de serviços com 9%. Aproximadamente 29% da população possuem renda acima de 20 salários mínimos, de acordo com o IBGE. O bairro intensifica a cultura alemã com diversos centros culturais e de idiomas que procuram resgatar a origem germânica.
Discrepâncias
A diferença entre as Anas de Joinville é mais do que social. As Anas representam os dois lados da cidade. Joinville tem 35 bairros, a maioria deles composta pelas classes B, C e D, nos quais as pessoas moram em barracos de madeira, as crianças brincam no meio das ruas ou em campos improvisados como no bairro Paranaguamirim. E as famílias dependem da boa ação da comunidade, de doações de alimentos e roupas arrecadados pelas igrejas. Alguns bairros ainda possuem valetas a céu aberto, são os casos do bairro Profipo e Paranaguamirim.
As escolas necessitam de reformas, os postos de saúde precisam de mais médicos e a população desses bairros está carente de ensino cultural e artístico. Enquanto Ana Paula Zimmerman faz aulas de teclado, conhece as notas musicais e está aprendendo a construí-las e transformá-las em música, Ana Paula Silva conhece a música apenas pela televisão e o rádio de sua casa. Enquanto Ana Paula Zimmerman assiste a diversas peças no Teatro Juarez Machado, Ana Paula Silva brinca de artista na escola em que estuda, sem qualquer orientação de um instrutor.
Assim vivem as crianças joinvilenses, com um enorme buraco que as separa chamado “diferença sociocultural”. Enquanto Ana Paula Zimmerman vai de Hilux para a escola, Ana Paula Silva e os amigos caminham duas quadras. Enquanto Ana Paula Zimmerman almoça no refeitório da escola e leva para o lanche um pedaço de bolo de chocolate feito pela empregada, Ana Silva almoça a merenda escolar.
A psicóloga Bianca F.Gossen, que atende pelo plano social e particular, diz que a maioria das crianças que frequentam seu consultório são de classe A e B. E os problemas que as crianças enfrentam são geralmente pela falta de relacionamento com os pais, ou pela falta de contato com a família . “Algumas crianças chegam aqui, indicadas pela escola, pelos professores e diretores e é preciso trabalhar a rebeldia”, diz a psicóloga. Bianca afirma que as crianças possuem sintomas de abandono, como a raiva contida e a timidez. “Um abandono de pais que trabalham às vezes é mais difícil de superar pela criança do que o abandono por completo”.
A psicóloga diz que o excesso de atividades também pode levar ao estresse infantil e geralmente é causado pelas necessidades dos pais de verem seus filhos inseridos em diversos cursos de formação profissional. O cansaço, a irritabilidade, o mau humor, o desânimo e a tristeza são alguns sintomas do estresse infantil e os pais devem estar atentos a eles. Para a psicóloga as crianças não teriam tantos problemas se pudessem ser crianças.
A maior cidade do Estado de Santa Catarina tem muitas coisas a serem trabalhadas. E se realmente se acredita que as crianças são o futuro, o futuro de Joinville necessita de atenção. Os dados do IBGE mostram que 30% da população sobrevive com apenas um salário mínimo. Nos bairros mais pobres da cidade, cada família tem pelo menos duas crianças que vivem em condições precárias.
De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), artigo terceiro: "As crianças e o adolescentes gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade". O artigo quarto relata que "é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária".
As Anas que conheci me mostraram sua inocência. As Anas que conheci, embora diferentes por completo uma da outra, são ambas vítimas na sociedade. Uma Ana é feliz apesar de viver em um bairro precário, com situações precárias. A garota é feliz porque tem amigos e uma família. Mas é carente de ensino, assistência médica e instrução artística ou cultural. A outra é carente de família e rica em assistências.
Uma Ana não consegue médico quando está doente porque não tem plano de saúde e raramente consegue ser atendida nos postos de atendimento. A outra Ana frequenta regularmente uma terapeuta indicada pela professora de música, que percebeu o risco de estrese infantil.
Uma Ana conversa com os pais diariamente, a outra Ana, só os vê no horário do almoço. Uma delas sonha em ver o pai em casa e descansado: “Ele trabalha demais com construção, chega todos os dias cansado, brinca comigo e com meu irmão, mas sei que tá cansado”. O pai de Ana é pedreiro e a mãe, costureira. A Ana que tem os pais empresários também sonha com algo parecido, essa Ana quer que os pais tirem férias e passem um pouco mais de tempo com ela. As Anas de Joinville são apenas crianças, mas têm problemas de adultos.
As crianças e adolescentes formam 36% da população do bairro. E todas as tardes, após as 15 horas, elas se reúnem na “pracinha”. A intenção é brincar nos balanços e escorregador, porém, a estrutura do parquinho não comporta o número de crianças e as condições físicas do local não são favoráveis. Em meio às correntes enferrujadas das balanças e às tabuas podres e gastas do escorregador, elas se divertem por alguns minutos, mas isso apenas até o grupo completo de crianças chegar.
Lá vem um garotinho ativo e comanda o grupo para o campo de areia. Embaixo do braço traz uma bola velha e descosturada, mas ainda assim, uma bola. O menino tem 12 anos e seu nome é Israel, ele é irmão gêmeo de Ana. Os quinze meninos que o esperavam partem atrás dele e o jogo começa. A diversão acontece entre gritos, chutes fortes de bola e pequenos dribles ainda mal elaborados. Alguns tombos e empurrões são impossíveis de ser evitados. Os garotos não têm uniformes de futebol, usam roupas normais e jogam descalços. Sai um gol, feito por Israel, e do outro lado do time, ouve-se um xingamento que logo cessa, porque o jogo dos meninos de 12 anos tem que continuar.
As meninas cansam do parque e se instalam próximo à grade de arame, cheia de buracos, mas ainda assim, uma grade. Percebe-se entre elas conversas paralelas, algumas torcem pelos garotos, outras só estão ali. E uma delas é Ana, que mantém uma conversa empolgante com a amiga do lado. Essas são as brincadeiras e diversões das crianças do bairro e duram apenas até as 17 horas, quando os adolescentes resolvem tomar conta do campo e expulsar as crianças, sem agressões físicas, mas acreditando que possuem mais direitos do que os pequenos. “Vamos embora, pirralhada, que a galera chegou”, grita Roger, um rapaz de 17 anos. As crianças partem cada uma para sua casa.
O potencial econômico do bairro está nas pequenas indústrias, comércios e outros serviços. A renda estimada por habitante é de um salário mínimo, em média. Algumas famílias recebem assistência dos próprios moradores. E a igreja católica do bairro oferece almoço para os menos favorecidos economicamente. “Temos muitas crianças aqui, mas adultos e adolescentes também aparecem”, diz Iraci Souza, 79 anos, que auxilia na cozinha. A cozinha comunitária sobrevive de doações dos moradores há aproximadamente nove anos, mas consegue oferecer apenas um almoço. A assistência médica fica por conta do posto de saúde. “É difícil conseguir vaga, vive cheio, às vezes eles ligam, a gente vem, mas aí não dá tempo de ser atendido ou não tem médico e a gente tem que voltar pra casa e se virar com chá mesmo”, comenta Terezinha Batista, 43 anos, que espera por uma consulta há três meses.
Ana Paula Silva estuda na Escola Estadual Alicia Bittencourt Ferreira, está na sexta série do ensino fundamental. “Vou bem na escola, gosto da minha escola, dos meus amigos, muita gente diz que não é uma boa escola, mas eu acho boa assim mesmo”, conta a menina enquanto movimenta os ombros mostrando que não dá importância aos comentários. Ana gosta de estudar, gosta de português e história, de jogar bola com as amigas, de ir à casa da avó que mora no mesmo bairro, de subir em árvores e assistir televisão quando não tem aula. Seu desenho preferido é As três espiãs. Ana não gosta de Matemática, de tomar banho cedo e nem de dormir antes das 22 horas. Ela não gosta de histórias comoCinderela e também não costuma brincar com bonecas.
A vida no outro lado da cidade
No bairro América, mora outra Ana, mas essa Ana estuda no Colégio Adventista de Joinville. Esta Ana tem 11 anos e o que mais gosta de fazer é ficar na casa da avó e brincar com os primos, alguns ainda bebês. Ana Paula Zimmerman, além de estudar, faz aulas de teclado, de inglês, espanhol e balé. As tardes de Ana não estão livres para brincar, ela chega da escola ao meio-dia e se arruma para os cursos. Quando retorna, faz as tarefas com a ajuda da babá. Os pais de Ana conseguem almoçar todos os dias com a garota, mesmo assim, ela sente falta deles. “Eles ficam só uma hora em casa, a gente só almoça juntos, mas sei que eles têm que trabalhar”, diz ela.
Ana gosta dos cursos que faz e diz que vai muito bem em todos eles. “Às vezes fico cansada e com sono, mas depois passa”. Ana não tem irmãos e, nos finais de semana, fica em casa para estudar para as provas. Os pais trabalham aos sábados e domingos, passam o dia inteiro no computador ou no telefone. O pai é empresário. “Meu pai tem três celulares, ele recebe muita ligação”, comenta.
Loira, de olhos castanhos caídos, usando um vestido da Lilica Ripilica, Ana ama os pais e orgulha-se deles. Mas sua infância tem muitas responsabilidades. Olha constantemente para o relógio e, quando pergunto por que, ela responde: “Desculpa, é que eu preciso estudar para as aulas de teclado. Tenho que tirar duas músicas para hoje e estou com medo de não ter tempo”. Lá vai a garota para o seu quarto lilás com papel de parede de estrelas azuis e todo o resto da decoração nas mesmas tonalidades de cores. Puxa a banqueta roxa do teclado, abre um livro com notas musicais e começa a tocar o tema do filme O fantasma da Ópera, ainda com algumas falhas, saltando algumas notas, talvez por estar nervosa com a minha presença ou por ainda não ter decorado os andamentos.
Sobre a cabeceira da cama de Ana há uma estante com livros. Consegui perceber que havia muitos livros de línguas estrangeiras e alguns de literatura infantil como A bela e a fera,Branca de Neve e Cinderela, em meio a eles, a coleção completa dos livros de Harry Potter do qual a menina confessou ser fã. Em seu armário guarda algumas fantasias - ela faz questão de mostrar a que mais gosta, a roupa da bruxinha de Hogwarts, a fantasia de Hermione Granger. Um dos livros me chamou a atenção, escondido após a coleção Harry Potter, estava O mundo de Sofia, de Jostein Gaarder. Perguntei se ela havia lido e a garota respondeu que não, que foi presente do pai, mas que ainda não teve tempo para ler.
Ana voltou ao teclado e pude observar ao lado dele algumas coleções de CDs do High School Musical, Rebeldes e Hanna Montana. Um gosto comum para uma menina da idade dela. Mas, perdido como O mundo de Sofia, havia um CD de Bach que Ana ganhara da professora de música e que a menina confessou não gostar.
A babá entrou no quarto: “Ana, está na hora de ir, você tem aula agora”. Ana apenas balançou a cabeça, fazendo um gesto afirmativo. Levantei-me, agradeci e me despedi. A menina não queria que eu fosse embora: “Você pode vir outro dia para brincarmos, podemos andar de bicicleta no jardim ou ouvir os meus CDs”. E assim, deu um sorrido meio tímido.
Segundo as pesquisas realizadas pelo Ippuj, o bairro América tem 10.851 habitantes: 5.100 homens e 5.751 mulheres. As crianças e adolescentes até 17 anos formam 24% da população. O potencial econômico do bairro está concentrado na oferta de serviços com 9%. Aproximadamente 29% da população possuem renda acima de 20 salários mínimos, de acordo com o IBGE. O bairro intensifica a cultura alemã com diversos centros culturais e de idiomas que procuram resgatar a origem germânica.
Discrepâncias
A diferença entre as Anas de Joinville é mais do que social. As Anas representam os dois lados da cidade. Joinville tem 35 bairros, a maioria deles composta pelas classes B, C e D, nos quais as pessoas moram em barracos de madeira, as crianças brincam no meio das ruas ou em campos improvisados como no bairro Paranaguamirim. E as famílias dependem da boa ação da comunidade, de doações de alimentos e roupas arrecadados pelas igrejas. Alguns bairros ainda possuem valetas a céu aberto, são os casos do bairro Profipo e Paranaguamirim.
As escolas necessitam de reformas, os postos de saúde precisam de mais médicos e a população desses bairros está carente de ensino cultural e artístico. Enquanto Ana Paula Zimmerman faz aulas de teclado, conhece as notas musicais e está aprendendo a construí-las e transformá-las em música, Ana Paula Silva conhece a música apenas pela televisão e o rádio de sua casa. Enquanto Ana Paula Zimmerman assiste a diversas peças no Teatro Juarez Machado, Ana Paula Silva brinca de artista na escola em que estuda, sem qualquer orientação de um instrutor.
Assim vivem as crianças joinvilenses, com um enorme buraco que as separa chamado “diferença sociocultural”. Enquanto Ana Paula Zimmerman vai de Hilux para a escola, Ana Paula Silva e os amigos caminham duas quadras. Enquanto Ana Paula Zimmerman almoça no refeitório da escola e leva para o lanche um pedaço de bolo de chocolate feito pela empregada, Ana Silva almoça a merenda escolar.
A psicóloga Bianca F.Gossen, que atende pelo plano social e particular, diz que a maioria das crianças que frequentam seu consultório são de classe A e B. E os problemas que as crianças enfrentam são geralmente pela falta de relacionamento com os pais, ou pela falta de contato com a família . “Algumas crianças chegam aqui, indicadas pela escola, pelos professores e diretores e é preciso trabalhar a rebeldia”, diz a psicóloga. Bianca afirma que as crianças possuem sintomas de abandono, como a raiva contida e a timidez. “Um abandono de pais que trabalham às vezes é mais difícil de superar pela criança do que o abandono por completo”.
A psicóloga diz que o excesso de atividades também pode levar ao estresse infantil e geralmente é causado pelas necessidades dos pais de verem seus filhos inseridos em diversos cursos de formação profissional. O cansaço, a irritabilidade, o mau humor, o desânimo e a tristeza são alguns sintomas do estresse infantil e os pais devem estar atentos a eles. Para a psicóloga as crianças não teriam tantos problemas se pudessem ser crianças.
A maior cidade do Estado de Santa Catarina tem muitas coisas a serem trabalhadas. E se realmente se acredita que as crianças são o futuro, o futuro de Joinville necessita de atenção. Os dados do IBGE mostram que 30% da população sobrevive com apenas um salário mínimo. Nos bairros mais pobres da cidade, cada família tem pelo menos duas crianças que vivem em condições precárias.
De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), artigo terceiro: "As crianças e o adolescentes gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade". O artigo quarto relata que "é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária".
As Anas que conheci me mostraram sua inocência. As Anas que conheci, embora diferentes por completo uma da outra, são ambas vítimas na sociedade. Uma Ana é feliz apesar de viver em um bairro precário, com situações precárias. A garota é feliz porque tem amigos e uma família. Mas é carente de ensino, assistência médica e instrução artística ou cultural. A outra é carente de família e rica em assistências.
Uma Ana não consegue médico quando está doente porque não tem plano de saúde e raramente consegue ser atendida nos postos de atendimento. A outra Ana frequenta regularmente uma terapeuta indicada pela professora de música, que percebeu o risco de estrese infantil.
Uma Ana conversa com os pais diariamente, a outra Ana, só os vê no horário do almoço. Uma delas sonha em ver o pai em casa e descansado: “Ele trabalha demais com construção, chega todos os dias cansado, brinca comigo e com meu irmão, mas sei que tá cansado”. O pai de Ana é pedreiro e a mãe, costureira. A Ana que tem os pais empresários também sonha com algo parecido, essa Ana quer que os pais tirem férias e passem um pouco mais de tempo com ela. As Anas de Joinville são apenas crianças, mas têm problemas de adultos.